sábado, 19 de fevereiro de 2011

A Última Deriva - VI

Livros! São portas portáteis de outras mentes, de outros mundos.Que são o nosso, ou o vão sendo! Lembro-me bem do fascínio com que aos cinco anos descobri essa outra dimensão. Parecia-me uma coisa mágica e infinita. Ainda me parece! Há sempre um livro na minha vida. O que me acompanhava nesta viagem era de Joseph Conrad, ele mesmo um viajante, marinheiro cujas histórias tão bem conseguem fundir o ambiente em que se desenrolam com a acção que retratam. Para Conrad o mundo envolvente é sempre uma personagem activa e imprevisível que por vezes irrompe, secundarizando e condicionando todo o desenrolar da acção humana. É assim em Nostromo, em Lord Jim, no Negro do Narciso, para não falar do mais conhecido Coração das Trevas, guião do magnífico Apocalypse Now de Coppola. As paixões humanas desenrolam-se num fundo incontrolável e movediço como se a Natureza fosse um Deus imanente que para si guarda a última palavra, ora adormecido e indiferente, ora furioso e destrutivo.


O Zé levava sempre outra literatura. Era um exelente navegador, e ao contrário de mim gostava sempre de saber onde estava e para onde ia. Mapas, livros de viagem e percursos pedestres eram com ele, e assim complementava e ordenava as minhas algo anárquicas derivas. Mas aceitava de bom grado e com entusiasmo os meus desvios e improvisações que, se por vezes nos levavam a nenhures, outras nos compensavam com fantásticas e inesperadas descobertas.

E lá vamos nós por esta zona esquecida do Douro Internacional. Aguaceiros dispersos pelo mesmo vento que torna a luz tão imprevista e mutável ao empurrar o aleatório  filtro das nuvens. Gosto destes dias. Há uma magia que tudo transforma momento a momento, por vezes culminando na labilidade majestosa de um arco-íris.
          
 E ali está o Zé, perdido entre o céu e a terra.

E assim chegamos a Escalhão (que nome...).

Não sei por que escolhi esta foto! Era uma portinha lateral da igreja, que pela estreiteza e degraus devia servir para os demónios entrarem ou para a virtude sair, sei lá...
Chuviscos. As oliveiras têm um ar tão saudável que decido comprar azeite em Barca de Alva, o que não é fácil. Tudo meio deserto, bebemos uma cerveja numa esplanada com a inevitável sandoka de presunto, ao nosso lado só uma inglesa solitária bebe ensimesmada copo sobre copo, de Porto, claro. Olhava-nos de soslaio e teria talvez uma história interessante a contar se por ali continuássemos! Perco meia hora até descobrir uma velhota que me leva a uns subterrâneos onde me vende cinco litros a preços gourmet.

 É. ainda me lembro de ver estas estações cheias de movimento e vida. Coisas perdidas no tempo!  
Era um dos fetiches do Zé. Não perdíamos uma velha estação por onde deambulávamos entre salas de espera e restaurantes abandonados, e fotografávamos carris e máquinas pintadas pelo tempo com os belos tons da ferrugem.
De Barca de Alva atravessámos para Espanha. Chuva chuva, cinzentos cada vez mais carregados sem o encanto dos aguaceiros. Longas extensões desertas. Fragas imensas. Águias.
 Reentrámos em Portugal pela barragem de Saucelhe
Até Freixo de Espada à Cinta. Aqui à direita continua a existir uma antiga barbearia em que, numa anterior viagem, que fizemos há anos aos Picos de Europa, o Zé cortou o cabelo. Adoro sentar-me naquelas velhas cadeiras e recuar a outros tempos, sentindo o sinistro frisson da lâmina a roçar-me o pescoço. E o deleite dos panos quentes com que nos acariciam. Até por vezes me arrisco a falar de futebol, correndo com a minha ignorância temática um perigo acrescido! Mistérios da mente humana!
Infelizmente estava fechada!...


Mas, mesmo ao lado, na lápide à direita fomos encontrar o nome de um colega, Ernesto Madeira, que, sendo amigo do nosso antigo director de serviço, connosco trabalhou algum tempo. Reza a mesma ter ele nascido nesta casa.

Ah, um castanheiro. Também em tempos cobriam todo o centro e norte do país e eram a base da nossa alimentação. Agora são quase raridades

Torre de Moncorvo. Aqui comemos o pior presunto de toda a viagem. O melhor foi em Saltarico, ou Celorico, como lhe chamava mais prosaicamente o José

A entrada para o magnifico museu do Vale do Coa, que é na realidade uma espantosa peça de arquitectura moderna. Lá dentro, os jovens arqueólogos que descobrem e mapeiam a zona ajudam-nos a decifrar os seus mistérios com uma aplicação e entusiasmo inexcedíveis, às vezes quase excessivos. É bom ver gente nova criativa e apaixonada pelo que faz.



Barragem do Teja. Último dia. Último acampamento. Já tendas arrumadas fazemos a tradicional última foto em conjunto, que seria também a derradeira. O pôr-do-sol no dia anterior tinha sido magnífico e por companhia apenas uns mergulhões negros que por ali pescavam e que não fotografei por não ter carga na bateria da máquina. Jantar num inesperado e quase requintado restaurante em Trancoso, na zona histórica, o Área Benta, onde carregámos as baterias, nossas e da máquina. Excelente lista de vinhos.
E lá vamos nós a caminho da Guarda,bem acompanhados!

Onde nunca resisto a visitar a gótico- manuelina Catedral da Guarda, que me dá sempre uma contrastante sensação mista de sólida fortaleza exterior com um interior de airosa prece aos céus.
Perto de Colmeal da Torre, Centum Cellas, suposta vila romana do séc. I ,envolta em algum mistério, de que sobressai esta magnífica torre. Desconhecia-lhe a existência. Foi uma das indicações do Zé, colhida na sua literatura.
Belmonte com a sua Judiaria, onde ainda persiste uma das comunidades judaicas mais antigas ,que desde o séc. XIII se conseguiu manter camuflada, unida e organizada. e mantendo os seus ritos mesmo durante os longos anos de perseguições sofridas pelos judeus. A foto é do castelo.

E depois de um bom almoço retorno a Lisboa.

Deste resumo que fiz desta última deriva faltam, como é óbvio as fotos que o José tirou. Seguramente interessantes como as do primeiro dia, em que eu estava sem máquina e em que, por ter perdido um tampão do jeep, em vez de sairmos de Lisboa deambulámos na procura de um substituto por todos os ferros-velhos da cidade e de sórdidos arredores, com alguns encontros e histórias engraçadas que terei prazer em vos contar tão logo tenha acesso a essas fotos. E foi um dia bem divertido e variado, embora o tampão tivesse de vir só no dia seguinte, e da Toyota do Porto.
Um último aviso para quem vê este blogue pela primeira vez: este post é o último da "Última Deriva". Para ver a sequência temporal sigam a numeração do mesmo, principiando pelo I até ao VI.

E só mais uma palavra: digam coisas. Há um espaço para comentários, é só clicar nele e surge uma janela onde poderão deixar as vossas opiniões. Isto é um blogue para todos nós e seria bom ter algum retorno da vossa parte. Ou contem histórias.
Hoje fui submetido a implantes dentários e não vos pude acompanhar no jantar. Este foi o meu possível modo de estar convosco.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

A Última Deriva - V


  Estradas pequenas e desertas levam-nos a Castelo Bom, cercada por terra queimada.



Tudo limpo arranjado,deserto. O Zé confraterniza com o habitante visível. Eu olho com amor estas pedras, ali nascidas e ali humanizadas.


A pedra esculpida em unidades funcionais, a selha, os degraus, o parapeito.
Ao cimo do altar dorme placidamente um belo e inocente Deus. Lembra-me a canção de Crosby, Stills, Nash and Youg  "Our house" (with two cats on the yard...)
Ecologia é também um pneu com flores.

 Finalmente avistamos um humano! Horta, couves mesmo à mão...


 E a lavandaria a dois passos...

Mas, mais uns quilómetros e já chegamos a Castelo Mendo

Onde atentas sentinelas nos esperam. Venderam-me um santinho (produto para as festas da aldeia), uma N. Sr.ª de Fátima travestida de N. Sr.ª de Castelo Mendo que coloquei no tablier do jeepinho e fez um bom (e barato) trabalho de protecção até Lisboa!


 E finalmente um varão, com o ar decidido herdado dos seus ancestrais,que fizeram e defenderam estes castelos. Na realidade um homem simples e directo que nos falou da aldeia, das pessoas,dos campos.

Praça Central. Pelourinho. Nem um café nem uma cerveja no horizonte. Nada é perfeito!


No alto do castelo a igreja. De certeza que à noite tem fantasmas, mas não ficamos para saber embora não fosse mau sítio para acampar.


À volta tudo é ruína e vestígio

Abertura da antiga cisterna. Por sorte não caí! Será outra entrada para  a Atlântida?
Como não sabia por onde andava o Zé resisti a ir lá abaixo investigar.

 Tempo para dar uma voltinha neste imenso dinossauro. Aguentei-me bastante bem, embora deva confessar que ele não era nenhum fórmula 1!

E lá vamos nós na demanda do solar dos Távoras. O Zé consultava mapas e dizia que é já ali, como os negros em África, mas ele foram voltas e reviravoltas por estradas secundárias...

Até que finalmente chegámos a Souro Pires e o que nos esperava era este casarão medievo, cuja fachada de fortaleza foi posteriormente enfeitada com uns sorrisos setecentistas na traça das janelas! Nada de muito inspirador...

Ruas pacatas onde se debulhavam ervilhas

E mais um merecido repouso. Só continuava a faltar a cervejola.


 Castelo Rodrigo.
Já conheceu melhores dias, e também piores, pois ainda me lembro de, há uns anos, o ver completamente destruído.


 E basta de pedras por hoje

Acampar junto ao lago. Ao fundo o jeepinho e o Indiana Alves vociferando comme d'habitude com a sua tenda. Eu, depois de feita a minha 123  já descanso na velha cadeira fétiche que ele guarda para mim desde as campanhas africanas. Arranjou-a e rebitou-a especialmente para esta viagem. Como se vê com carinho, engenho e arte! Do encosto já só resta metade e no assento, para evitar maiores males, tive que substituir o rebite tipo fujão pelo nó tipo górdio.
Curioso é que a cadeira dele estava impecável! Acasos...