segunda-feira, 22 de janeiro de 2007

Segunda-feira, 20 de Junho de 1988 - 11.º dia

Entrámos no antigo Sahra espanhol ao som de Monday, Monday, dos Mamas & Papas. Achei apropriado, sendo justamente segunda-feira. Este retrato foi tirado pouco depois, numa das incontáveis paragens diárias em que os meninos se entretinham a fotografar os motivos mais absurdos.

Se dei um grande salto no tempo e pus aqui agora esta fotografia foi só para homenagear Denny Doherty, voz linda, que morreu há dois dias.

Estou desculpada, não estou?

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A Demanda do Alguidar - Parte I



Ai, o alguidar! O que eu penei para ter um alguidar!

Será preciso explicar aos leitores mais desatentos que, na minha categoria de membro da expedição a quem calhavam sempre as tarefas menos nobres, a compra do dito foi uma espécie de ascensão do Inferno ao Purgatório. Palavrinha de honra! Só eu sei o que era fazer incontáveis viagens ao regato com pratos, copos, talheres e demais apetrechos de cozinha nas mãos, pousar tudo nas ervas, ou calhaus, ou o que fosse. Porque a essa hora os meninos filosofavam à beira da fogueira e cá a sqwaw ainda estava de serviço...

Já não sei onde foi que finalmente conseguimos comprar o alguidar, mas este retrato atesta à saciedade a boa compra que foi. O Dr. Carlos Vatel Gomes usa-o para dar banho ao jeep, julgo que já perto de Ouarzazate e depois da descida da montanha - a tal que me ia fazendo morrer de medo. Em boa verdade, se não morri então de ataque cardíaco é porque me está destinada outra morte qualquer. Nota máxima para a condução do Carlinhos à beira daquele precipício (confesso que fechava os olhos a toda a hora), nota máxima para o carinho do Zé, sempre aquele grande senhor, que acabou aquela descida que me pareceu levar séculos aflito do braço esquerdo, tamanha a força que tinha de fazer a segurar-me para que os solavancos me magoassem o menos possível. A famosa contractura muscular que fiz logo ao 3.º ou 4.º dia, quando caí lá no raio das piscinas naturais. E ainda vocês se admiram por eu odiar este país!

No meio daquele pesadelo que foi a descida por aquela vereda de montanha, só me lembro de pensar a toda a hora: Se nos aparece alguma coisa pela frente, nem que seja um burro, ninguém sai daqui vivo!

Lembro-me também, porque nada tem uma força evocativa maior do que a música ou os perfumes, que estava a tocar King Crimson, In the Court of the Crimson King. Que era do Carlos e eu não conhecia - isto de ser perto de 20 anos mais nova tem os seus inconvenientes. Ainda hoje, quando oiço o disco, tenho rápidos lampejos de precipícios na montanha e de rodas do jeep quase a trilharem o vazio nas curvas. A descida foi tão longa que até deu para ouvirmos também o meu Songs of Leonard Cohen, senhor muito cá das minhas obsessões.

Oh the sisters of mercy,
they are not departed or gone.
They were waiting for me
when I thought that I just can't go on.
And they brought me their comfort
and later they brought me this song.
Oh I hope you run into them,
you who've been travelling so long.

Yes you who must leave everything
that you cannot control.
It begins with your family,
but soon it comes around to your soul...

Eu sou tramada, meninos...! Como foi que eu acabei a citar Leonard Cohen quando o tema era um humilde alguidar e a sua grandiosa demanda?

domingo, 21 de janeiro de 2007

Onde terá sido isto tirado?...

 
Confesso que não me lembro.

Perto de Figuig, aquela cidade longínqua e carrancuda perto da fronteira com a Argélia e que parecia um aquartelamento militar?

A ideia de aqui porem os vossos comentários passa também por suprir as lacunas da minha memória...

Se o Guia Michelin visse isto...


Sem comentários. Escusado será dizer que nem sequer entrámos neste pardieiro...

Os fedelhos ranhosos...

 
Estavam em toda a parte, como uma praga, mesmo e até nas paragens mais remotas e nas aldeolas mais isoladas da montanha, como esta.

Cercavam-nos em bandos, puxavam-nos pela manga, penduravam-se nos estribos do jeep, a pedir presentes.

Foram sistemática e implacavelmente corridos com toalhetes perfumados TAP. Bem feito!

A Escriba

Depois da trabalheira de montar o acampamento, gozo um merecido descanso enquanto vou bebendo um copo de vinho e o Carlos prepara o jantar.

Gargantas do Todra.




Nota à margem: foto irremediavelmente datada. Hoje em dia ninguém se lembraria de cocktail de gambas para entrada...

Dr. José Indiana Alves

Julgo que este retrato terá sido tirado quando pernoitámos nas gargantas do Todra.

O Zé está com a sua toilette habitual à noite, com o forro do meu blusão vestido (aquelas mangas encarnadas que se vêem), e empunha a sua célebre faca de cortar a cebola, o nome maldoso que eu e o Carlos lhe demos.

A referência à salsa era comigo, que em cada mercado de cada vilarejo não descansava enquanto não desencantava uma banca qualquer que a tivesse.

sábado, 20 de janeiro de 2007

Dr. Carlos Vatel Gomes

Era nesta bela figura que o ilustre médico se passeava por terras marroquinas: em fato de operar! Não duvido que fosse cómodo e fresquinho, mas temos de concordar que ficava bastante patusco!

Quando voltámos para Portugal só fiquei mais dois ou três dias em Lisboa, indo a seguir de férias para o Algarve com a Nita, para aquela casinha amorosa que costumávamos alugar ao João Navarro. Ainda hoje estou para perceber como consegui ter tantos dias de férias nesse ano.
O diário de bordo foi concluído já lá em baixo, e uma bela noite a Nita pôs-se a lê-lo. A páginas tantas, devia ir na parte do jantar na casa em ruínas, levanta os olhos do caderno e pergunta-me: O Carlos é Vatel Gomes? Escusado será dizer que explodi numa enorme gargalhada. Ai a Nita e o seu fraco por apelidos!

Tirada a caminho de Figuig, com a areia a varrer a estrada e muitos, muitos gafanhotos.

quinta-feira, 11 de janeiro de 2007

O fim do Diário de Bordo

A partir do relato dos três primeiros dias, que aqui fica registado para a posteridade possível, fiz apenas breves anotações, com data, local de partida pela manhã e local onde montávamos o acampamento.















Esta fotografia julgo ser de um acampamento perto de Layounne, quando iniciámos a subida da costa, no regresso. Alguém se lembra do nome da terra? Nela estou eu de volta dos meus escritos, após o jantar, enquanto o Carlos lê placidamente.

quarta-feira, 10 de janeiro de 2007

O nome do blog

Mensagem ontem recebida do intrépido explorador Carlos, subordinada ao assunto "Graal":

Olá Teresa

Embora algo contrariado com o papel secundário que me atribuis (ao ponto de no cabeçalho apenas me ser reconhecida a qualidade de "companhia") em detrimento do mais secundário Alves (que só ascendeu ao grau de Indiana depois da post graduação que graciosamente lhe concedi em "Aventuras e outras perdas de tempo") dizia eu, apesar desta depreciação que me é feita, ADOREI ver de novo a tua prosa épica que nos faz esquecer a demanda do Graal em prol da tão bem retratada demanda do alguidar de plástico.

Pena teres perdido o resto do manuscrito! Como é isso possivel, ó indigna descendente de Camões? Onde a pertinácia dos nossos próceres? Pátria, como podes tu sobreviver ao olvido se de teus feitos se olvidam tuas gentes!

Mas Deus é grande, como grandes são os arquivos fotográficos do nosso Indiana, que vão a caminho, e que talvez refresquem essa tua tão delapidada qualidade.

Beijos do Grão-Mestre da Ordem do Alguidar

Ó valha-me Deus! O blog recebeu este nome em homenagem ao romance homónimo do meu adorado Eça de Queiroz, aproveitando o facto de haver um Alves no nosso grupo! Pensei que fosse óbvio! Esclarecidos?

segunda-feira, 8 de janeiro de 2007

Domingo, 12 de Junho de 1988 - 3.º Dia

De Melilla à Casa em Ruínas

Acordámos bem cedinho e levantámos o acampamento. Contentámo-nos com um café (péssimo, não esqueçamos que Melilla é um enclave espanhol...) por pequeno-almoço e entabulámos conversações com vários cambistas na clandestinidade. O câmbio não era dos mais favoráveis e, depois de muito discutir, apenas o Zé trocou dinheiro.

A bicha de carros na fronteira de Marrocos desanimava o espírito mais paciente, mas afinal o diabo nunca é tão mau como o pintam e a coisa revelou-se menos má do que seria de esperar. Em pouco mais de uma hora estávamos depachados. Tivemos aliás bastante sorte, porque os polícias não foram especialmente implicativos e limitaram-se a uma olhadela superficial pelas bagagens. Antes assim, que arrumar toda aquela tralha outra vez teria sido uma valentíssima estopada.

Nem meia dúzia de quilómetros teríamos percorrido em território marroquino quando... trás!... primeiro controlo de passaportes, o primeiro dos muitos e incontáveis controlos que nos esperavam. Nada de grave, é certo, mas bastante maçador.

Pouco antes de Oujda fizemos a primeira paragem numa cidadezinha tranquila e de ar acolhedor. Se é verdade que em Roma há que ser romano, em Marrocos há que ser marroquino ou, como diria o Zé... nharro. Assim, instalámo-nos numa esplanada e tomámos um chá de hortelã. Aproveitámos também para fazer algumas compras: pão, laranjas, pêssegos, alhos, salsa... Ainda deitei um olhar inquisidor em volta na esperarança de vislumbrar alguidares de plástico nalgum lado, mas não tive sorte.

Voltámos à estrada, mas pouco depois fizemos nova paragem em Oujda, desta vez para cambiar dinheiro. O Zé ofereceu-se para tomar conta do jeep na nossa ausência. Enquanto eu perguntava a um passante (nharro, é claro) onde era a bendita casa de câmbios, o Carlos levou sumiço. Como eu não percebesse grande coisa das explicações que ia ouvindo num francês deplorável, o indígena propôs acompanhar-me. Informei o Zé, que acenou uma concordância muda, e trotei descontraidamente rua abaixo atrás do nharro. Não era longe e num instante arrumei o assunto, só estranhando que o Carlos (eu ainda tinha olhado em volta à procura dele, mas não o vi em parte alguma) não aparecesse. Estava eu a receber os dirhams das mãos do caixa quando ele e o Zé entram por ali dentro com urn ar esgazeado. Ao que parece tinham andado feitos doidos à minha procura e no mínimo já deviam estar a imaginar-me sequestrada no harém de algum sheik do deserto.

O Zé pôs um tom muito ríspido para me admoestar como se eu tivesse doze anos:

– A menina nunca mais faça isto, ouviu?

Abri muito os olhos e a boca nurn grande "oh!" do mais genuíno espanto.

– Mas... – ainda tentei protestar.

– Não sabíamos de si, andámos à sua procura! A menina não pode afastar-se de nós!

– Mas eu disse-lhe que aquele tipo me ia mostrar onde era isto! – exclamei, dividindo-me entre a surpresa e um princípio de irritação.

Aqui marquei um ponto – vantagem de cá. Não podendo contestar tão grande verdade, optou por se fazer desentendido e insistiu que daí em diante ficava estabelecido que eu não saía de baixo das vistas deles. Entre surpresa e irritação (ainda tive uma resposta torta a dar-me pulinhos impacientes na ponta da língua), venceu o meu natural bom humor. No fundo aquilo era bastante caricato, convenhamos... Pus-me a rir e prometi solenemente que daí em diante havia de segui-los como uma sombra, nem que fosse até às profundezas do inferno.

Prosseguimos viagem. Por volta da uma da tarde começámos a procurar uma sombra para ir fazer na terra dos outros aquilo que temos vergonha de fazer na nossa: um piquenique à beira da estrada, como uns perfeitos saloios. Por fim lá nos ajeitámos debaixo de umas árvores enfenzadas, estendemos urma manta no chão e começámos a tirar os mantimentos do jeep. Eu ia lançando olhadelas de soslaio para os lados – é que tínhamos a proximidade inquietante de um rebanho de cabras e, dado o ar manifestamente velhaco de todas elas, não era de pôr de parte a possibilidade de alguma marrada traiçoeira.

Acometido de um acesso de prodigalidade, o Zé propunha que se abrisse uma garrafa de vinho. O Carlos discordava, portanto era minha a responsabilidade do desempate. Venceu a sensatez: não senhor, não se abria garrafa nenhuma, que só tínhamos sete, o vinho ficava para o jantar .

Estômagos reconfortados, voltámos à estrada. Em breve a paisaqem começou a mudar. As árvores foram rareando cada vez mais, deixámos de atravessar povoações, e de ambos os lados da estrada estendia-se a perder de vista urna imensa vastidão desértica.

Grandes são os desertos, minha alma, e tudo é deserto...

Respirei fundo, no desmedido alívio de começar finalmente a sentir que entre mim e Lisboa havia uma enorme distância – aquilo era outra terra, era África, estava longe de tudo, longe de todos.

Fizemos uma única paragem, a primeira de muitas e muitas dezenas de paragens para tirar fotografias.


















Depois rodámos sem interrupções até perto das cinco da tarde. Nessa altura começámos a ver gafanhotos.1 Primeiro de quando em quando, depois continuamente, vindo estatelar-se contra o pára-brisas. Começou a levantar-se um vento furioso, a areia varria a estrada em sulcos nítidos, o céu fez-se de um tom ameaçador.

– Isto vai piorar – vaticinou o Zé, que ia na altura ao volante –, é melhor procurarmos sítio para acampar.

Menos arguta em questões meteorológicas, limitei-me a olhar em volta com ar estúpido, numa vaga e tola esperança de ver um oásis materializar-se diante dos meus olhos. Oásis não havia, só vi pouco depois uma tabuleta tosca que indicava que para a direita havia uma barragem. O Zé também reparou nela e, após breve conferência com um Carlos muito céptico, fez marcha atrás. Realmente parecia muito improvável que aquele caminho de cabras conduzisse ao que quer que fosse, e menos ainda a uma barragem, mas como as alternativas não eram nenhumas e o vento já soprava tão forte que avançávamos entre nuvens de areia, saímos mesmo da estrada. Um ou dois quilómetros mais adiante avistámos uma casa abandonada e solitária. Parámos. Protegida por um muro alto a rodear um pátio, era um abrigo providencial.

No meio de uma ventania ensurdecedora e de gafanhotos às centenas, montámos o nosso primeiro acampamento em Marrocos, e que era também o primeiro a obedecer aos cânones de intrépidos exploradores com um mínimo de brio. Com o factor brioso algumas polegadas desviado do zénite, o Carlos optou por montar a tenda dentro da velha casa, o que bastante deve ter contrariado um morcego misantropo que lá estava e que de repente se viu a braços (a asas, para haver mais rigor) com a sua privacidade devassada e o seu bendito sossego bastante comprometido. Já o factor brioso do Zé refulgia em todo o seu esplendor e, desafiando ventos e tempestades – não se trata de uma metáfora para abrilhantar estas páginas, é apenas a expressão sucinta de uma realidade muito concreta –, o intrépido explorador montou a sua tenda cá fora, no pátio, soltando ocasionais desabafos na melhor linguagem vicentina (humanos e desculpáveis, afinal, que aquele chão pedregoso era de fazer perder a paciência a um santo e não havia espia que entrasse).

Por fim tudo se resolveu em bem, as tendas estavam prontas, e passou-se à fase seguinte, a preparação do jantar.

Impõe-se fazer agora um breve parêntesis para explicar como estavam distribuídos os papéis dos intrépidos exploradores: o Zé era o arrumador oficial da expedição, com direito de vida e de morte sobre uma complexa jurisdição de malas, sacos, saquinhos e montanhas de tralha de difícil classificação, e seu respectivo acondicionamento e desacondicionamento (?) no jeep. O Carlos era o cozinheiro, pesando-lhe nos ombros a responsabilidade de elaborar as listas de compras, destinar ementas e confeccionar toda a sorte de iguarias. Eu, bem... para mim sobrou o papel bem menos glorioso de pau para toda a obra. Na verdade, as minhas atribuições eram bastante diversificadas: lavadora de loiça, auxiliar na montagem e desmontagem das tendas, descascadora de laranjas, costureira, esteticista, moço de recados, animadora, bode expiatório e milhentas outras coisas que agora não me ocorrem e que aliás seria fastidioso enumerar. Em suma, era um bem-humorado híbrido de Sexta-feira e de Oficial de Dia. Como se tudo isto ainda não bastasse, na minha qualidade de cronista oficial da expedição (como estas modestas páginas deixam bem patente), era também uma espécie de Pêro Vaz de Caminha de trazer por casa.

Mas voltemos à preparação do jantar. Temporariamente investida no cargo de ajudante do Dr. Carlos Vatel Gomes, fui indigitada para a missão pouco transcendental de picar salsa2 e de cortar um pimentão. Levei um dedo à boca e fiquei aflita:

– Safa! Isto pica que se farta!!

O Cartos, na certa a achar-me uma autoridade pouco abalizada, veio investigar. Provou também e pronunciou-se:

– Não pica nada! Corta mais dois.

– Três pimentões?! – revoltei-me – Mas tu estás doido!

Ele lançou-me um olhar esmagador que me reduziu ao silêncio. Obedeci. Magister dixit... Em último caso, a responsabilidade não era minha, como Pilatos lavei as mãos do assunto.

Quando mais tarde nos instalámos para jantar verificámos dolorosamente que eu tinha razão. É que um pimentão teria sido muito, imagine-se agora o efeito de três... Estava horrorosa e indescritivelmente picante! O Zé chorava (também aqui não se trata de uma figura de estilo, as lágrimas corriam-lhe mesmo pela cara), eu gemia lamentavelmente e o Carlos soprava tão discretamente quanto possível, em parte por pura bravata, em parte para mostrar que nem sequer estava assim tão picante – não esqueçamos que a culpa era só e de mais ninguém, e que a consciência lhe pesava...

Lá fora continuava a rugir a tempestade, mas nós estávamos quentes e confortáveis, num grande e abençoado sossego, bebendo café com todos os vagares. Foi então que o nosso Alves, decidida e definitivamente metamorfoseado em Indiana Alves, se lembrou de ir fazer explorações. Esbarrou com uma cordial mas firme recusa da minha parte (já estava sentada a escrever, e não haveria forças no mundo que me pudessem tirar a caneta da mão para a substituir por uma lanterna...), mas tendo obtido a adesão pronta do Carlos, lá foram os dois, embrenhando-se na escuridão. O Indiana teve o cuidado de me armar com a sua imponente faca de mato, para a qual o porvir reservava terríveis humilhações.

Evidentemente, é muito duvidoso que em caso de perigo (e nem sei bem de que espécie) eu fosse capaz de fazer uso dela, mas considerei que era inútil argumentar e que era generoso da minha parte dar ao Zé a possibilidade de se imaginar a viver aventuras de fazer gelar o sangue nas veias. Sem argumentar, pus a faca à mão de semear e acenei-lhes um adeusinho na ponta dos dedos. É claro, pedi-lhes que no regresso da passeata me chamassem ao aproximar-se, não fosse eu assustar-me. Sou valente, mas tudo tem o seu limite...


Julgo que não demoraram muito. Pelo menos, assim me pareceu. É que da escrita passei para a leitura, e o meu amigo Alberto Caeiro tem realmente o dom de me fazer perder a noção do tempo. Algo desapontados ao verificar que não tinham de acorrer em meu socorro, que eu não tinha sido raptada, nem violada, nem ao menos molestada pelo morcego nosso vizinho, os intrépidos exploradores sentaram-se pacatamente à conversa, bebericando golinhos de whisky e servindo-me fraternalmente, com uma benevolência de louvar, umas parcas gotas de vez em quando.
O dia seguinte anunciava-se cheio, recolhemos por fim. O vento não parou toda a noite de soprar em rajadas furiosas, mal nos deixando dormir. De vez em quando acordava e ficava muito quieta, a ouvi-lo. E sorria no escuro, a lembrar os versos de Alberto Caeiro:
Outras vezes ouço passar o vento,
E sinto que só para ouvir passar o vento vale a pena ter nascido.


1 Convém lembrar que no mês anterior Marrocos tinha sido atacado por uma terrível praga de gafanhotos. Ainda lhe apanhámos os restos.

2 As minhas agruras com a salsa ainda não tinham começado...

Notas à margem...

Meninos, corrijam-me se eu estiver enganada, por favor. Há aqui um espaçozinho para acolher os vossos comentários, não sei se estão a ver... Por baixo do texto, onde diz comments, os meninos clicam, aparece-vos uma nova janela e... botam faladura. Nada mais simples!

Será a memória a atraiçoar-me ou foi justamente nesta primeira noite já em terras de África que a İHola! revelou pela primeira vez as suas variadíssimas e insuspeitadas utilidades? Se bem me lembro, a nossa tenda tinha sido montada junto de um candeeiro do parque de campismo, e só demasiado tarde demos pela asneira, quando, ao recolher, descobrimos que a luz batia em cheio lá dentro. Mas tínhamos a İHola!, Deus nosso Senhor seja louvado! Umas quantas folhas arrancadas e arranjadas em volta do candeeiro proporcionaram-nos um abat-jour de notável eficácia.

Ah! Ia-me esquecendo de referir que nesta noite tomámos aquele que seria o nosso último duche em muito, muito tempo. Daí em diante... riacho, e é se queres! E eu que odeio água fria! Ainda fico a bater os dentres só de lembrar a temperatura gélida daquele riacho lá para o Alto Atlas em que o Zé foi dar com um anormal de um beduíno a espreitar a minha higiene. E da artística fotografia que ele fez do meu shampoo e do condicionador pousados em cima de umas ervas. Os meninos têm de passar-me esse material todo!

domingo, 7 de janeiro de 2007

Sábado, 11 de Junho de 1988 - 2.º Dia

DE MÁLAGA A MELILLA

Acordámos muito cedo (umas sete horas, ou até menos), ao som de um verdadeiro romance canoro. A primeira reacção foi de irritação pura, género "Rai's partam os (...) dos pássaros, que logo haviam de me acordar!!", mas gradualmente fomos ficando conquistados pelo virtuosismo dos pequenos cantores emplumados. Garanto que ao pé deles um Luciano Pavarotti e uma Teresa Berganza* não passam de aprendizes da mais baixa extracção. Parados que estávamos junto a uma finca para vender, tivemos de defrontar a chegada matinal e inesperada de um espanhol a querer correr connosco sem qualquer razão plausível. Cá para mim aqueles tipos ainda não conseguiram perdoar-nos o Tratado de Zamora, e muito menos Aljubarrota. Pelo menos não consigo encontrar expllcação mais satisfatória para tanto alarido e tanta e tamanha agressividade a hora tão matutina e – pormenor de não pouca importância – ainda antes do pequeno-almoço. E por falar em pequeno-almoço, parámos numa terreola chamada Castel del Ferro para fazer essa refeição fundamental e de caminho, assim como quem mata dois coelhos de uma cajadada, aproveitámos para lavar cara e dentes e pôr uma superficial aparência de ordem nas nossas abandalhadas pessoas. Deleitámo-nos depois com café (intragável) e churros (passáveis), uma combinação pouco ortodoxa mas, ao fim e ao cabo, perfeitamente dentro do espírito da viagem. Retomámos a estrada até Almería, onde tratámos dos bilhetes para o ferry e suportámos uma entediante espera até à hora do embarque.

Uma vez no barco, a intrépida exploradora (eu, recorde-se...) fechou-se na casa de banho para proceder a uma tentativa de lavagem mais alargada da sua pessoa. A acreditar nas palavras do intrépido explorador Alves, quem passasse à porta conseguiria ouvir nitidamente um alegre chapinhar. Tanto pior, que o que interessava era a Iimpeza, e saí de lá fresca como uma rosa.

Instalámo-nos num dos salões, o explorador Carlos mergulhado na leitura apaixonada e apaixonante da Isabel Allende, o explorador Alves perdido em complicadíssimos cálculos, todo urn aparato de tecnologia (bússolas, mapas, e mais que houvesse) sobre a mesa, para tentar determinar a hora exacta da passagem ao largo de Alboran, uma ilhota perdida no meio do Mediterrâneo que o já amplamente referido explorador tinha a ambiciosa (e vã, como se provou mais tarde) pretensão de fotografar. Quanto à exploradora Teresa, ia fazendo de tudo um pouco para matar o tempo – isto depois de ter lido a iHola! de fio a pavio e de ficar a saber que a Lola Flores continua em dívida para com o fisco, que o Eddie Barclay se casou pela oitava vez, e que há fortes rumores de que a Carolina do Mónaco, que parece levar muito a sério a sua vocação de galinha-poedeira, está outra vez grávida.











A travessia era longa, acabei por cair neste sono reparador e já bem merecido. Uma câmara maldosa fixou-o para a posteridade.



Ninguém chegou a saber ao certo quando se terá dado a famosa passagem ao largo de Alboran, não obstante o invencível optimismo do explorador Alves, todo entusiasmado a apontar um vulto ainda indeciso no horizonte que – como verificámos mals tarde – não era mais do que a costa de África.
De concreto, apenas uma coisa: de Alboran não vimos nem sinais.

Chegada a MeliIla lá pelas oito e meia. Como quem prepara (no mínimo) uma expedição ao Pólo Sul, tomámos de assalto o primeiro supermercado que incautamente se nos atravessou no caminho, e foi uma verdadeira orgia de enlatados de toda a espécie e de toda uma vasta gama de produtos os mais diversificados (tão diversificados que até se comprou um amaciador de roupa... Achei a aquisição meio bizarra para uma expedição daquele cariz, mas como a decisão partiu do explorador Alves, mais experimentado do que eu naquelas andaças, acatei-a sem protestar.) O mesmo explorador presenteou a comunidade com uma garrafa de whisky, e houve logo de seguida alguma discórdia quanto ao número de garrafas de vinho a comprar. Eu e o Carlos batemo-nos galhardamenle por um mínimo de sete e levámos a melhor. Da longa Iista que tínhamos previamente elaborado faltava apenas riscar um item: um alguidar. Mas como tal artigo parecia a ser pura e simplesmente desconhecido no local, resignámo-nos a comprá-Io já em Marrocos.

Seguiu-se a busca de sítio para dormir e, como as alternativas eram nulas, contentámo-nos com o parque de campismo local. Uma vez montada a tenda, tratámos do saboroso dever de nos alimentar. Guiados pelo Zé, aportámos a um restaurante com ar de sobrevivente de um cataclismo e roemos melancolicamente uns bifes mal acompanhados por umas batatas fritas notavelmente engorduradas. Como o moral de exploradores da nossa têmpera não vai abaixo com tão pouco, não nos importámos muito e considerámos ser aquilo uma espécie de preparação gastronómico-estomacal para os duros dias que se avizinhavam. Recolhemos cedo, uma vez que queríamos passar a fronteira logo à hora da abertura. Desta vez a sorte não me favoreceu, e o meu sono foi sendo alternadamente perturbado pelo ressonar do intrépido explorador à minha esquerda (Alves) e do intrépido explorador à minha direita (Carlos).

* De notar que estes escritos têm vinte anos. A querida Tereza Berganza, extreordinária mezzo, inesquecível Rosina e Angelina, retirou-se há muito, coisa que o Pavarotti também devia ter sabido fazer. Sei que está agora muito doente, há que ser caridosa. Mas o homem nos últimos dez anos (pelo menos) não fez outra coisa senão prostituir-se. Nem todos sabem ter a graciosidade de uma Dame Joan Sutherland...

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Sexta-feira, 10 de Junho de 1988 - 1.º Dia


De Lisboa a Málaga

Partida de Lisboa por volta do meio-dia, debaixo de um tempo incerto a prometer chuva. Primeira paragem em Vendas Novas, para ingerir uma espécie de almoço. Nova paragem em Serpa, onde os intrépidos exploradores alarvaram umas sandocas (aqui a Nita havia de rir a bandeiras despregadas...) de presunto e... margarina. A intrépida exploradora não comeu nada e foi o que Ihe valeu, porque foi poupada à forle indisposição que atacou os senhores.

Passagem da fronleira pouco depois das cinco, breve paragem para fazer aquilo que faz qualquer bom português mal se apanha em lerras de Castela – comprar caramelos. Suponho ser esta uma manifestação da mais pura lusitanidade...

Sem mais inlerrupções, fomos até Sevilha, onde se parou para beber uma cerveja e, ¿como no?, para que eu pudesse comprar a iHola!, que chega sempre a Portugal com duas semanas de atraso. Imagine-se o que seria faltar-me esse pitéu!... Impensável, claro. 0 escárnio de que a minha compra foi alvo por parte do Carlos escorreu por mim como água pelas penas de um pato. Beati pauperes spiritu...

Chegada a Málaga lá pela meia-noite, paragem para comer e uma rápida ida ao porto para saber o horário do ferry para Melilla. Grande decepção: o barco, nesta época do ano, partia de Almería (a 200 km), e só no dia seguinte.

A essa hora os intrépidos exploradores estavam com a intrepidez bastanle diminuída, e já só conseguiam pensar em dormir. Assim, não teriam percorrido nem 50 quilómetros quando se decidiu armar barraca, o que é o mesmo que dizer montar a tenda para dormir. O local não era excessivamenle bom nem excessivamente mau, servia razoavelmente os nossos objectivos. Um certo pudor aconselha-me agora a não me alongar em detalhes e a dar por finda a narração, mas o meu arraigado amor pela verdade e pelo rigor histórico obriga-me a confessar que ninguém fez as clássicas abluções nocturnas, e nem sequer a tão necessária lavagem de dentes. É que nao havia nem uma gota de água...

Pelas três horas, mais coisa menos coisa, recolhemo-nos. E suponho que a intrépida exploradora deve ter adormecido antes dos dois companheiros de façanhas, uma vez que não se lembra de ter ouvido ressonadelas. Deus é grande!

MARROCOS REVISITED

Grandes são os desertos, minha alma, e tudo é deserto.
Álvaro de Campos

Resolvi iniciar este blog como uma surpresa e um presente para os meus queridos Zé e Carlos, a quem me liga uma amizade de quase vinte anos.

As razões são várias. A primeira e mais importante é o facto de querer de alguma maneira preservar o diário de bordo que então comecei, com grande profusão de pormenores. Tamanha profusão de pormenores, na verdade, que me fiquei pelo terceiro dia de uma viagem que durou três semanas.

É certo que tenho atenuantes. Os nossos dias eram muito cheios e fatigantes. A partir do meio da tarde começávamos a procurar um sítio para pernoitar, forçosamente próximo de um riacho. Eu era a eterna angustiada do banho, e just in case, como tinha uma profunda desconfiança em relação àquele país que já conhecia e tinha detestado, não obstante tê-lo visitado pela primeira vez em regime de grande luxo (La Mamounia, Palais Jamai, etc.), ia devidamente abastecida de um saco de supermercado a abarrotar de... toalhetes perfumados TAP, fornecidos pela minha irmã, hospedeira à época. Devo dizer que consegui tomar banho todos os dias, mas os toalhetes foram bastante úteis para calar os bandos de fedelhos ranhosos e impertinentes que nos assaltavam em cada aldeia que atravessávamos a reclamar Cadeau! Cadeau! Cahier! Cahier! E ainda rio só de pensar como aqueles presentes devem ter sido desconcertantes para o raio das criancinhas.

Mas não devo dispersar-me, mesmo sendo tantas as memórias que agora vêm visitar-me. O nosso ritual de fim de dia era invariavelmente igual. Montava-se o acampamento – incumbência minha – , cozinhava-se o jantar, incumbência do Carlos, fazíamos jus às suas habilidades culinárias (continuo a considerar umas certas douradas compradas a um pescador já no antigo Sahara Espanhol um dos mais memoráveis jantares de toda a minha vida), lavava-se a loiça (tarefa minha, já que por sistema era sempre em mim que recaíam os trabalhos mais humilhantes). E então, e só então, eu sentava-me junto à fogueira, quando havia fogueira, de caderno no colo e caneta em punho – julgo que tenho uma fotografia de um desses momentos. Mas a essa hora já estava demasiado estoirada, e cedo comecei a rabiscar apenas apontamentos telegráficos das principais ocorrências do dia.

O diário de bordo, sabe-se, ficou pelo terceiro dia. Ao longo de todos estes anos o Carlos e o Zé têm-me azucrinado o juízo para eu o concluir, coisa que agora é impossível. Nas minhas sucessivas mudanças de casa nestes quase vinte anos, o caderno das anotações levou descaminho. Ficou-me só o pouco texto que passei para o computador ao voltar a Lisboa, que já digitalizei e agora posso pôr aqui.

Vamos pois a isto. Vocês, meninos, têm centenas de fotografias – muito penei eu com essas constantes paragens! – , forneçam-mas que eu ponho-as todas neste espaço que é bem mais vosso do que meu, mera escriba que sou.

Espero que gostem. Bem sabem que adorei a nossa viagem mas, como eu digo desde então... havendo vida e saúde, e se Deus for meu amigo... nunca mais ponho os pés em Marrocos!

ATENÇÃO AO MERCEDES!*

* Private joke, nossa e muito só nossa. Certamente um dos episódios mais caricatos de toda a viagem. Ainda se lembram?